“Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há”.
A punição é a emenda. É o efeito colateral de uma sociedade imperfeita, o arrancar do pulmão podre, que de podre não tinha nada até que as tragadas o atingissem. Porém, no social, diferentemente da emenda cirúrgica, a realidade nos traz para uma cicatrização que raramente acontece. O indivíduo que recebe o novo pulmão tem a plena capacidade de se reestabelecer em saúde, já o punido pelo Estado jamais terá a chance de sequer entrar na lista de receptores. Acusado, culpado, sujo e alvo do ódio humano, deverá apodrecer em cadeias imundas até que o citado Estado defina o momento exato de sua soltura. Sem chances, sem qualquer sombra de reparo, quiçá a compreensão exata do porquê. A punição é a emenda da fraqueza humana, que guiou comportamentos até o nível do intolerável e determinou a tortura como método de coagir aqueles que agissem de forma imprópria, tentando impedir que outros seguissem o mesmo caminho. Uma emenda podre, feita com mãos de açougueiro, que de nada adianta além de manter o culpado o mais longe possível da elite social.
Enxergamos com os olhos que a genética nos deu, mas interpretamos com a sobriedade, ou falta dela, que a sociedade nos forneceu. Conclusões, ideais, crenças, anseios, tudo parte do princípio básico do condicionamento. Não nascemos com o sonho de entrarmos na faculdade de Direito. Não nascemos com a ideia de que homossexuais são membros execráveis da sociedade pró-família. Não nascemos católicos ou espíritas. De onde vem tudo o que nos torna o que somos hoje? Escolhas? Sorte? Influência divina? Bem, se a última for uma opção, ele não estava lá tão ligando para os citados criminosos do último parágrafo.
A bandeira da escolha é a primeira a ser defendida pela maioria. É impossível sequer imaginar um mundo onde o ser humano não possuísse escolhas, onde tudo fosse uma grande ilusão. De fato concreto, temos apenas um. Somos o resultado de incontáveis pontos improváveis. Já dizia minha avó: “se eu tivesse morrido de tifo como os médicos disseram que eu morreria, nenhum de vocês estaria aqui” – E é a mais pura verdade. Somos o complexo resultado de infinitas situações casuais, que podem determinar qualquer situação em nossa vida, seja sair de casa 5 minutos atrasado e, por consequência, morrer por uma bala perdida, ou simplesmente termos uma séria conversa com nossos pais que determine por completo o desejo de entrar em uma certa faculdade. Cada micro-movimento humano dentro do universo pode desencadear proporções catastróficas ou simplesmente insignificantes. Não temos a capacidade de saber qual será esse movimento crucial, apenas deixar que a vida siga em frente, apoiando-nos na doce ilusão de que, no fim, somos nós que estamos tomando determinada decisão e não que essa decisão na verdade é o resultado de infinitas atenuantes que acompanharam nossa existência e talharam nosso caminho para que o tiro fosse dado.
Ah, o tiro, a ligação entre a incapacidade humana de escolher com total imparcialidade e o fato de jogarmos nossos criminosos em uma cela fétida. O tiro que matou Joana, que saiu cinco minutos atrasada para o trabalho e morreu no ponto de ônibus sem nem ter tempo de saber que ia morrer. E se ela estivesse dentro do horário? E se seu marido, João, não tivesse decidido que a noite anterior seria de uma grata surpresa sexual, motivo que acabou deixando Joana exausta o suficiente para perder os preciosos cinco minutos que a fizeram perder a vida? E se João não tivesse resolvido fazer essa surpresa graças a uma vitrine de sex shop que viu de relance enquanto almoçava? E se João não tivesse decidido almoçar nesse novo restaurante só porque o que ele estava acostumado a ir aumentou os preços? E se João e Joana nunca tivessem se conhecido naquela boate? E se ela não tivesse ido graças a uma amiga que lhe deu o convite VIP? Será que ela ainda estaria viva? Seria sua amiga, então, a causa da morte? Bem, aí entramos em todos os “e se” da vida dessa amiga até a entrega do convite.
E quanto ao assassino. Imaginando o caso mais atacado por aqueles que defendem o ideal de “o bandido fez uma escolha e deve pagar por isso”, peguemos por exemplo o playboy de classe alta que tem tudo nas mãos, mas mesmo assim desvia seu caminho para a marginalidade. E se ele não tivesse decidido dar aquele tiro enquanto assaltava um casal sorridente para poder comprar drogas? E se ele não tivesse conseguido a arma na noite anterior com um amigo de faculdade que também cheirava pó? E se ele jamais tivesse conhecido Pedro, que numa noite em uma boate (a mesma em que João e Joana se conheceram, só pra dar um clima de Lost) convenceu o amigo que experimentasse só uma vez? E se ele jamais tivesse ido a essa boate só para contrariar uma ex-namorada ciumenta que não largava do seu pé? E se ele não tivesse terminado o relacionamento por conta de uma outra mulher que entrou em sua vida? E se… Bem, e se, no final das contas, no meio de tantas situações que guiaram João, Joana e O Criminoso para tudo o que aconteceu, eles já tivessem morrido antes por conta de outro criminoso que também teria infinitos “e se” em sua vida?
Cada decisão, cada passo dado, cada pensamento é fruto de muito mais que uma simples escolha. A vida d’O Criminoso de nosso conto jamais poderia ser resumida somente ao último “e se ele não tivesse dado o tiro”. Essa foi apenas mais uma das infinitas escolhas condicionadas ao longo de sua existência. E mesmo que, por algum milagre, fôssemos capazes de dar-lhe uma segunda chance inconsciente, há a absoluta certeza de que o tiro seria dado novamente, pois não foi o dedo que apertou aquele gatilho, foi a bagagem de tudo o que ele viveu, assim como será a sua interpretação desse texto, ou apenas o seu próximo suspiro.
“Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir” – o poder aparentemente necessário para que possamos continuar a viver em nossa sociedade imperfeita, guiada a base de remendos mal planejados, mal executados e sem resultados. Não descarte a chance de ser você um dia atrás das grades, pois o “e se” de amanhã, bem, esse nenhum de nós é capaz de prever.
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