É de impressionar a capacidade que nossa caixinha mágica tem de expor pessoas ao ridículo, fustigar valores universais como crença e etnia, trazer à tona velhos preconceitos e provocar na audiência a adesão a um tipo de humor de desvalorização da condição humana. É o que vem acontecendo com o Big Brother Brasil, já em sua 9ª edição, ao manter confinado um número de pessoas que busca o prêmio maior de R$ 1 milhão e prêmios menores, que incluem uma casa, vários carros, dezenas de celulares, computadores etc., toda essa vitrine de dar água na boca de seus ávidos consumidores, que chegam embalados pelo marketing dos produtos que patrocinam o "programa".
A inovação desta edição (pode até ter começado na edição 2008) é a criação de castigos semanais a serem cumpridos por um ou mais dos participantes. É aqui que está o ponto. Em geral, o escolhido precisa vestir uma roupa especial por um período de tempo que pode chegar a 48 horas, é privado de algum conforto físico e recebe o comando de realizar uma tarefa a cada toque de uma sirene. O que se espera dos "escolhidos"? Ora, que fiquem irritadiços, cansados e prestes a ter um ataque de nervos. A carga negativa dos "castigados" se volve primeiro para quem os indicou e depois transborda para o grupo. Ou seja, o castigo abre margem para muita discórdia. O BBB é um programa que fatura (e muito) expondo as mazelas da condição humana e é alavancado pelo nível de discórdia que impeça um clima mínimo de civilidade e bom relacionamento social dentro da casa da Globo em Jacarepaguá.
Se fosse índio, me sentiria ofendido
Voltemos aos castigos. Estes são, na maioria das vezes, infames. Vejamos alguns deles:
Um casal deve se vestir de índios (obviamente índios norte-americanos, com modelos, plumas, colares e cores dificilmente encontráveis em qualquer nação indígena no Brasil) e são obrigados a fazer a dança da chuva cada vez que toca o sinal. A maneira como uma longeva tradição indígena é retratada é uma forma pouco sutil de ridicularizar os povos indígenas e passa a mensagem de quão ingênuos (para não dizermos outro adjetivo) estes são. Não é de hoje que a cultura indígena é objeto de escárnio da auto-proclamada civilização branca. Alguns exemplos? Quando alguém não tem o que fazer numa noite de 3ª ou 5ª feira o que diz que vai fazer? Um programa de índio. Algo muito desinteressante, sem graça que… somente poderia ser feito por um ou mais índios. Quando alguém fala um português sem dominar a gramática e sem muita noção do uso deste ou daquele vocábulo como o sujeito é referido? Ah, ele fala igual a um índio. Depois dessa exposição caricata e pejorativa para com os valores dos primeiros habitantes das Américas, ainda temos que conviver com a hipocrisia ensinada em muitas das nossas escolas que respeitamos nossos índios, valorizamos seus costumes, admiramos suas crenças. Entendo que o castigo imposto ao casal para dançar dezenas de vezes a dança da chuva, a caráter, é de um ridículo somente superado pelos castigos posteriormente apresentados no mesmo programa. Se fosse índio me sentiria bastante ofendido e entraria com uma representação na esfera do Judiciário. Provavelmente não daria em nada tal representação, mas ao menos vocalizaria minha dor, embora com muito menor visibilidade que aquela alcançada pelo programa apresentado por Pedro Bial e seus"heróis".
Triste do povo que precisa de heróis” (Bertold Brecht)
Existem heróis e heróis. Se existe algo que me irrita profundamente é o jeito sem cerimônias com que o mestre-de-cerimônia do Big Brother Brasil saúda aquela penca de jovens – mais um ou dois da terceira idade – confinados na casa montada pela TV Globo no Rio de Janeiro: “Boa noite, meus heróis!” De tanto usada, a frase virou bordão do BBB. Seu autor? O jornalista e dublê de guru do programa, Pedro Bial.
Ora, o que há de heroísmo em um programa que, longe de agregar conhecimento, é um poço de futilidades onde quanto mais se escava mais há para se escavar? 15 ou 16 pessoas vendendo sua intimidade, seus pensamentos e corpos, hábitos e sotaques, expondo-se ao ridículo em centenas de situações, muitas destas de gosto profundamente duvidoso, tudo em troca de prêmios avulsos ou do prêmio maior de R$ 1.000.000.00. Repito, o que há de heroísmo nisso? A ver os números do Ibope, o programa é quase uma coqueluche nacional. Revistas, jornais e sites dedicam ampla cobertura ao que ocorre dentro da casa. Cria-se um frenesi, arma-se uma curiosidade em larga escala, como se os destinos do povo brasileiro dependessem deste ou daquele que irá continuar ou sair da casa.
Os tropeções da História
Há poucos dias, uma participante foi escolhida para o tal castigo do monstro. A jovem deveria, vestida de galinha (isso mesmo, de galinha), chocar um ovo no jardim sempre que escutasse o som de pintinhos. Isso seria cumprido à risca por 48 horas. Como seria bom se a azarada selecionada para a performance pudesse dizer em alto e bom som: "Recuso-me a me vestir de galinha porque não sou galinha. Recuso-me a chocar ovos porque não sendo uma galinha não é inerente à minha condição humana. Peço que bolem outra tarefa menos ridicularizante de minha condição de mulher."
Um discurso desses dificilmente – se não, impossível – alguém iria ouvir da boca de uma jovem sequiosa para conquistar o seu sonhado R$ 1.000.000,00. Mas seria um discurso verdadeiro. O castigo traz consigo uma realidade que não quer calar em nosso país: somos machistas e não conseguimos fingir o contrário por muito tempo. Claro que poderia ter sido escolhido um homem para cumprir o castigo. Mas, digam-me, senhores leitores, sendo um homem aquele a escolher quem vai se expor ao ridículo por dois longos dias, será que lhe passaria pela cabeça optar por um homem? Os preconceitos contra as mulheres vêm de muito longe. Estão em textos sagrados: São Paulo advertia contra as mulheres. Santo Tomás de Aquino afirmava ser a mulher um ser "ocasional" e "acidental". No Livro de Provérbios (11:22), a mulher é redimida enquanto posse do homem: "A mulher virtuosa é a coroa de seu marido, mas a que procede vergonhosamente é como podridão de seus ossos." Encontram-se em textos dos filósofos: Eurípedes (485-406 a.C.) toma Hipólito como seu alter ego e argumenta, ardoroso, que "a mulher é um flagelo desmedido que posso provar; o pai que a gera e cria estabelece um dote a quem a leve, a quem o livre de tamanha praga!"; já Virgílio (70-19 a.C.) define a mulher como sendo sempre "coisa variável e mutável". Ninguém menos que o renomado Montaigne (1533-1592) insiste em deixar às mulheres os afazeres domésticos: "A ciência e ocupação mais útil e honrosa para uma mulher é o governo da casa." E depois ele escreveria que o papel da mulher seria o de "sofrer, obedecer, consentir." Enquanto a História avança, Voltaire (1674-1778) invocava um argumento pseudo-biológico para explicar a "inferioridade" da mulher: "o sangue delas é mais aquoso." Risível é a História. Mais risível ainda é nossa predisposição a realçar os tropeções da História. E isso o formato Big Brother Brasil vem fazendo à larga.
A humanidade assemelha-se a um pássaro
E contra estes cânones do pensamento universal não precisaríamos reforçar percepções tão incorretas e injustas sobre a mulher, seu potencial, seus infinitos talentos, sua certeira inteligência e sempre presente intuição – aliás, é corrente adjetivar a intuição como uma faculdade inerente à mulher. Será que Boninho, o diretor-geral do BBB9, e sua equipe, não poderiam se dar ao castigo (sim, me parece que a esses gênios da raça pesquisar a história seria um trabalho muito longe de algo reputado como prazeroso) de inventar outras formas de entreter o público, mantendo os polpudos patrocínios amealhados com um programa que reforça o que há de mais ridículo na natureza humana, qual seja, criar estereótipos depreciativos da condição humana e reforçar atitudes e comportamentos de rebaixamento da mulher ante o homem?
Nunca é tarde para aprendermos que a humanidade assemelha-se a um pássaro; uma asa é o homem e outra asa é a mulher. Um pássaro não pode alçar vôo sem o equilíbrio das duas asas.