Após todo o reboliço e indignação neste mundo virtual graças a um áudio vazado no Jornal da Band, aonde o renomado jornalista Boris Casoy (ex-TJ Brasil) criticava de maneira depreciativa quase toda a classe de garis - devido veiculação de mensagem de boas festas por dois trabalhadores da área, o polêmico jornalista esportivo Jorge Kajuru através de sua webtv com seu jeito peculiar desabafa em fúria contra a atitude fascista do âncora da Band.
O que ficou dessa história Sempre que sintonizo a Band e surge a imagem do apresentador Boris Casoy meu reflexo imediato é mudar de canal. E isso acontece graças ao vazamento de seu comentário – preconceituoso e desrespeitoso – sobre os garis no último dia do ano passado. As palavras, o escárnio e a desfaçatez com que o jornalista se referiu aos garis contribuem para que o controle remoto seja acionado, sem dó nem piedade. Talvez eu seja o único a agir assim. Não sei. É que existem imagens e fatos que, assim do nada, alcançam alto relevo em meus juízos de valor, em minha memória. No primeiro dia deste ano, Boris Casoy se desculpou do alto do seu microfone de âncora do Jornal da Band. Mas era tarde demais, o estrago estava feito e seu pedido de desculpas, talvez por não conter a força do achincalhe proferido em rede nacional de televisão, ficou ali perdido no rodapé de minha memória. Era como se a retratação não combinasse, seja em número, gênero ou grau, com a figura grandiloqüente do experimentado jornalista. O assunto mobilizou tanto minhas energias que publiquei no neste Observatório o texto "Que vazem os áudios" . Algo que custo a entender é porque cargas d´água um indivíduo com milhares de horas ao vivo, apresentando em tribuna privilegiada que é a bancada de um dos principais telejornais do país, vociferando a torto e a direito contra tudo o que julgava ser errado no Brasil, crispando o rosto sempre que noticiava uma maracutaia, carregando na ironia sempre que surgia a fala de uma autoridade – seja do governo ou não – e usando à exaustão o hoje vazio e oco bordão "Isto é uma vergonha!", de repente, e sem mais nem menos, mostrasse outra faceta, bem menos humana e cordata, arranhando em baixo relevo sua trajetória profissional de tantos decênios. O episódio mostra à larga que ainda não conseguimos encurtar a distância entre a intenção e o gesto. A distância entre o coração e a mente é imensamente superior à existente entre a Terra e Marte. E no meio disso tudo nos encontramos às voltas com a farsa montada sobre a falsa moral. Juízo de valor Acabo de me inteirar que o jornalista responderá a quatro processos. Todos motivados por seu tropeço na própria língua. Destaco dois dos impetrantes. A Federação Nacional dos Trabalhadores em Serviços, Asseio e Conservação, Limpeza Urbana, Ambiental e Áreas Verdes (Fenascon) é autora de ação civil pública contra a Band e o jornalista Boris Casoy. A ação deu entrada no Fórum João Mendes, localizado na região central da capital paulista. Nesta ação, a Fenascon, por intermédio de seu advogado, entregou dados sobre o número de trabalhadores da categoria em atividade no país – cerca de 360 mil pessoas. Com base nas informações, o ressarcimento, caso seja decidido judicialmente, será revertido para o fundo de assistência dos trabalhadores de limpeza. Outro processo foi movido pelo gari Demilson Emidio dos Santos, da cidade da Campina Grande (PB). No processo de indenização por danos morais, Santos argumenta que o fato causou "danos profundos" a ele a sua família. Portanto, temos uma entidade de classe e um dos 360 mil garis do Brasil buscando reparação à altura do preconceito vazado em rede nacional de televisão. Em suas frases podíamos tão-somente avaliar a mesquinhez e a arrogância, a soberba e o preconceito demonstrado de forma irreversível pelo vetusto jornalista. Por que escolher os garis para apresentar sua métrica para o caráter humano? Os garis que compõem a categoria que desempenha trabalho essencial para a sociedade, que fazem a limpeza, tornam o planeta habitável, que ajuda a evitar enchentes e impede a proliferação de tantas enfermidades, certamente não mereciam serem alvos de tão odiosos comentários. É impressionante as lições que esse vazamento propiciou: ** O respeito e a solidariedade aos garis transpareceram de forma quase unânime; ** O repúdio à fala de Boris Casoy também pareceram ser unânimes; ** Ficou evidente o poder nefasto que um juízo de valor tem de destruir reputação, mesmo que esta esteja aninhada no alto dos microfones de um telejornal noturno. Patrimônio maior Não é sempre que o espírito de corpo domina a chamada "grande imprensa": existem situações em que é de bom tom noticiar o mau comportamento de um de seus mais vistosos profissionais. Neste momento em que as quatro ações seguirão seu curso normal, o que poderá levar de meses a anos até uma sentença judicial, o certo é que estes vídeos com o Boris Casoy continuarão sendo, cada vez mais, vistos na internet. E para um jornalista que invariavelmente arroga para si o papel de justiceiro da sociedade, de corregedor-mor dos costumes sociais, nada deve ser mais penoso que observar a rápida deterioração desse patrimônio infungível que atende pelo nome de credibilidade. Existirá punição maior?
Pobreza, preconceito e ética
......Gilberto Gil sugere, numa de suas músicas, que para se falar com Deus há que se despir de uma série de conceitos, valores e adereços do comportamento, adotando-se uma espiritualidade própria, uma introspecção que conduz à pureza, alcança as profundezas da alma. Claro que o desejo de falar com Deus, que pra alguns é uma mulher bonita e gostosa, é algo meio abstrato, mas tudo bem. De qualquer forma, Deus é uma categoria estudada e tem bastante crédito na vida terrena.
......Pobreza é outra situação igualmente respeitável. É como se para entendê-la, fosse necessário deixar o estômago vazio para se experimentar uma amostra grátis do sofrimento habitual do pobre: a fome. Acaba sendo como que uma legitimação: não se poder discutir a pobreza de barriga cheia. Há pessoas que, pelo próprio histórico de vida são legitimadas a discutir o pobre e suas questões. Como se tivessem um passaporte social que permitisse o discurso. Ou saíram de um meio social efetivamente pobre, ou doutoraram-se em pobreza, passando a ter uma sensibilidade especial com o carente. Há outras que, completamente inautorizadas, consumando um egoísmo perverso, resta-lhes aparecer como oportunistas, muitas vezes atrás de votos, chateando pessoas humildes e inocentes (políticos, tarólogos, zeronovecentistas da TV, vendedores de baú da infelicidade e tantos outros golpistas).
Tudo isso passa por uma discussão de respeito ou de desrespeito, podendo fazer a questão chegar à discriminação. Há quem conte piadas sobre negros (por que não crioulo, é mais bonito, poético e brasileiro). E há quem ria dessas piadas. É o riso ignorante, barulhento e preconceituoso. Mas sempre ignorante. Essa gente esquece que quem discrimina o negro, mais à frente, poderá perfeitamente discriminar, o baixinho, o barbudo, o careca, o deficiente, o desempregado, o doente de AIDS, o falido, o feio, o gordo, o homossexual, o jovem, o judeu, o magricela, o menor abandonado, a mulher, o pobre, o português, o sem curso superior, o velho etc. etc. E aí, o que riu, pode estar neste caldeirão de preconceito, realimentando uma sociedade essencialmente perversa, essencialmente ignorante. Falta respeito na sociedade, compostura social. Vive-se uma gravíssima crise de ética, dentre outras que se assiste.
......Pessoas não-pobres falam da pobreza sem lágrimas nos olhos, sem estar de joelhos, sem respeito, sem carinho. Sem um sentimento de revolta que deveria minimalizar todo o discurso. Sem um luto social que acompanhou, por exemplo, toda a produção de Betinho, o pai maior de todos os preocupados com as questões da miséria brasileira. Certa vez, questionado se sua campanha contra a fome não era uma gota d'água no oceano, Betinho respondeu com uma história: uma floresta pegava fogo, todos os animais fugiam, menos um beija-flor que ia no rio buscar uma gota d'água, no bico, para pingar no incêndio, quando outros bichos lhe perguntaram se aquilo não era ineficaz, respondendo o passarinho que pelo menos fazia a sua parte para apagar o fogo.
......Muitos burgueses de plantão, desses que vão a barzinhos, que jamais produziram nada de positivo para a sociedade, contra a miséria, criticaram Betinho. O mesmo Betinho que morreu e assistiu pouco conserto no geral, mas deixou consciências formadas, sociologicamente mais alertadas. O mesmo que teve legitimidade para deixar irrespondida a pergunta, na não-condenação criminal de Collor: "quem são esses caras que estão aí no Supremo?".
......Emergentes e pretensos emergentes que nunca lutaram no front da miséria, aparecem em arrotos de filosofismo de botequim, repetindo sentenças pré-fabricadas do tipo "isso tudo não passa de demagogia". Esquecem (não sabem) que tais atitudes apolíticas, mais estimulam o descaso para com o pobre a partir de certa camada social. Joãozinho 30, grande filósofo brasileiro, faturou espetacularmente alguns primeiros lugares na Sapucaí, cunhando a frase quem gosta de pobreza é intelectual. Esta verdade, depois de retratar todo um legítimo anseio de ascensão do pobre, ainda que captado somente pelo sentido da visão, em arquibancada, em quatro dias do ano, deixa para uma investigação teórica, um resíduo subliminar perigosíssimo, o de que poderia ser natural não se preocupar com o pobre, porque essa coisa chata de pobre seria interesse apenas para cientistas sociais.
......Se a pobreza tivesse que ser inventada, enquanto tema de estudo, poderia se proteger com códigos secretos, só acessíveis aos engajados, verdadeiramente, com a questão social. Assim, grande parte dos Poderes Legislativos, por exemplo, ia ficar deliciosamente desempregada. Ia ser a vingança da natureza, das gentes, a vingança divina contra uma horda uníssona de aproveitadores. Podia não resolver a pobreza, mas a vida ia ser mais honesta.