Profeta

domingo, 15 de novembro de 2009

Paradoxos de um país que, por ignorar suas origens, parece não querer conhecer a si mesmo .

Brasil Império, século 21

Depois de um encontro com líderes indígenas na região de Alter do Chão, no Pará, Luis Dolhnikoff reflete sobre os paradoxos de um país que, por ignorar suas origens, parece não querer conhecer a si mesmo .

Às imprescindíveis lideranças indígenas no Brasil*
O Brasil é um país com crise de identidade. Com crise de identidade, e não em crise, porque essa crise o acompanha desde o nascimento. Primeiro colônia, portanto, sequer um país de fato, depois Estado-nação independente, porém organizado social e economicamente como a colônia que fora. Negro em grande parte de sua população, mas sem reconhecer os negros como parte da população na maior parte de sua história (oficialmente, até o final do século 19). Com um trato social conhecido por sua afabilidade, ao mesmo tempo que por sua barbárie. Rico, mas miserável. Belo, mas horrendo.

Porém, apesar de tudo isso, é um erro a afirmação inicial. Porque o Brasil, para ter uma crise de identidade, deveria possuir uma identidade que fosse objeto dessa crise. E o Brasil não tem tal identidade. Sequer essa identidade multifacetada que se pretende montar a partir do que seriam suas partes, como a famosa tríade "índios, negros e portugueses". Principalmente por causa dos primeiros.

Os africanos, seqüestrados de suas vidas e transplantados como escravos para outro continente, se não deixaram para trás toda sua cultura, dela só puderam trazer fragmentos - o que constitui, aliás, uma das desgraças do rol de desgraças que foi a escravidão africana. Tiveram, então, de adotar a cultura dominante, incluindo a língua portuguesa e a religião cristã, e nela re-inserir os fragmentos de cultura africana que lograram preservar. Mas isto não é verdade para os índios "brasileiros". Entre aspas, porque não há índios brasileiros. Ao menos, não como se entende o que isto significa.

Por índios "brasileiros" não se compreende os índios abrasileirados, cujos ancestrais foram retirados de seu mundo e lançados em um mundo estranho, numa espécie de pesadelo diuturno que sequer o sono podia interromper (mas apenas substituir). E esta é a única acepção em que a expressão teria verdadeiro sentido. Pois os índios que não são abrasileirados não são, no sentido corrente da palavra, brasileiros. Sequer são índios.

A palavra índio é uma variação de indiano, por sua vez uma variação de hindu. Porque Cristóvão Colombo, ao desembarcar no Caribe, acreditava ter chegado à Índia. Seu erro geográfico se cristalizaria num erro onomástico. Não há índios no Brasil, isto é, não há indianos. E não somente porque a América não é a Índia, mas também porque os povos do continente não são um povo que possa ser nomeado por apenas um etnônimo: alemães, franceses, brasileiros, índios. Nem índios, nem unos.

Nem índios, nem unos, nem brasileiros: a referência mais correta seria povos originais do Brasil. Como isto soa inusitado demais, a alternativa razoável, ou menos incorreta, é povos indígenas do Brasil. Ou melhor: povos indígenas do império brasileiro.

O Brasil é um país sem identidade porque com muitas identidades. Isto, que parece uma obviedade e um clichê multiculturalista, não é nem um nem outro. Não é um clichê multiculturalista porque não se trata de uma afirmação ideológica. E não é uma obviedade porque se trata de uma falsa consciência. Sabe-se disso, mas na verdade não se sabe.

Sei que não se sabe, porque eu mesmo não o sabia até o descobrir recentemente. E se o descobri, foi porque descobri a falta de identidade brasileira, logo, a multiplicidade de identidades que povoam o território do país, empiricamente. Pois convivi por alguns dias com estrangeiros aqui nascidos. Escrevo-o, e estranho a expressão. Porque não podem ser estrangeiros, se nascidos no Brasil. Ao mesmo tempo, reconheço neles a mais perfeita alteridade. O contato com um grupo de butaneses não seria essencialmente distinto.

A diferença é que butaneses nascem no Butão. Quem nasce no Brasil é legalmente brasileiro. Mesmo se filho de butaneses. Neste caso, terá naturalmente duas culturas a compartilhar: a dos antepassados e a do país de adoção de seus pais. Mas e se o Brasil não for o país de adoção de seus pais, se houver nascido no Brasil e se tiver uma cultura ancestral própria?

A única resposta possível é que o Brasil é um país policultural. Digo policultural para escapar do clichê do multicultural. E também porque poli é bem preciso: o Brasil é um território ocupado por muitas culturas distintas. E cultura, aqui, tem conotação antropológica: o Brasil é um país habitado por muitas etnias, muitos povos, muitas nações. O Brasil não é, de fato, um Estado-nação, mas um Estado-nações. Um Estado que governa sobre várias nações é um império. O Brasil ainda é um império.

Há impérios ruins e impérios piores. Estes últimos podem ser agrupados em dois casos extremos: os piores impérios são, ou os muito agressivos, ou os muito indiferentes. Pois os impérios indiferentes impõem, por serem impérios, sua presença aos povos dominados. Mas por serem indiferentes, não oferecem a esses povos os benefícios que poderiam advir como compensação pela conquista (quando o império não for especialmente agressivo como o Reich alemão na Europa do Leste, caso em que nada pode compensar a conquista). Por exemplo, o desenvolvimento técnico, econômico e cultural que as partes centrais do Império Romano experimentaram (e que estão na origem da Europa Ocidental moderna). O Brasil é um império pior por indiferença.

A indiferença do império brasileiro não vem da negação, como os turcos fizeram por tanto tempo com os curdos, negando-se a nomeá-los e negando-lhes a própria língua, para não falar da autodeterminação (negação realizada, naturalmente, através da repressão brutal e franca). A indiferença brasileira vem de um misto de indiferença, ignorância, impotência e inépcia.

A indiferença é aquela de um grupo fortemente dominante em relação a outro que não o ameaça. A força dominante e a predominância da força (exército, polícias, justiça, economia) geram uma ascendência e uma segurança que tornam o outro uma irrelevância.

A ignorância é uma conseqüência da indiferença: os brasileiros em geral sabem muitíssimo mais da cultura norte-americana que da cultura ameríndia (e não somente pela agressividade e pela dimensão da difusão norte-americana). Mas a ignorância também retroalimenta a indiferença: na prática, no dia-a-dia da quase totalidade da população brasileira, os povos indígenas são uma inexistência.

A inépcia é aquela de um Estado constituído para ser inepto, e daí sua robustez incomum. É um erro de julgamento considerar o Estado brasileiro historicamente fracassado. Pois para crer nisto é preciso partir da idéia de que o Estado brasileiro foi criado e mantido para cumprir as funções do moderno Estado liberal-democrático à maneira ocidental. Umbilicalmente ligado a uma sociedade civil robusta, que municia seus quadros e os controla, que o monetariza por meio dos impostos e recebe em troca os serviços essen­ciais de uma sociedade complexa, como segurança, infra-estrutura, educação, sistema de saúde, justiça e demais serviços públicos. Conforme já enunciava José Bonifácio de Andrada e Silva no início do século 19, "querem governar o Brasil independente como o Brasil colônia": daí se explica a Independência não ter vindo acompanhada do fim da escravidão, que demoraria mais três gerações. Em conseqüência, o país nasce com grande parte de sua população absolutamente vazia de qualquer dimensão de cidadania (e outra parte com uma dimensão mínima). Além disso, os aparelhos estatais provinciais seriam cooptados pelos poderosos locais, origem de nossa histórica oligarquia - e de nosso oligarquismo. Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, demonstraria como a previsão de Bonifácio se concretizou, com o Estado sempre privatizado por grupos que dele se servem para enriquecer. O resto, da corrupção sistêmica e espessa ao fracasso histórico do Estado em servir à população, é conseqüência. O Estado brasileiro não é um fracasso, porque não foi construído para servir à sociedade. Entre aqueles que o Estado brasileiro não serve estão os povos indígenas.

A impotência do Estado imperial brasileiro em relação aos povos dominados é o resultado da soma da indiferença, da ignorância e da inépcia.

Dos quatros cavaleiros do quase-apocalipse dos povos indígenas do império brasileiro, a ignorância é o único afeito exclusivamente à sociedade, em vez de ao Estado. Por mais que este Estado não seja ligado a essa sociedade de modo profundo e forte, ficando sempre a sociedade como espectadora involuntária e inescapável do espetáculo medonho do Estado a serviço de si mesmo (leia-se, de seus parasitas), a sociedade tem meios para influir no espetáculo (ainda que não de dirigi-lo de fato, como haveria de ser). É pela ignorância da população - isto é, pela diminuição da ignorância -, que se pode ter alguma chance de mudar o quadro de um império cruel por indiferença para o de um império mais atento às necessidades dos povos dominados.

No caso do Brasil, tem-se de começar pelo começo: é preciso que a população dominante do país, de cultura ocidental e língua portuguesa, saiba que o Brasil abriga em seu território, imperialmente, povos cuja relação com a cultura ocidental e a língua portuguesa se dá pelo fato de terem sido submetidos ao Estado imperial do Brasil.

A Constituição brasileira incorpora algumas noções fundamentais coerentes com este fato (como a noção de "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" [art. 231]), ainda que sem reconhecer, naturalmente, o status imperial do país. Em todo caso, o mais relevante, aqui, é que a Constituição, apesar de seus melhores artigos (como o 231 e o 232), e a despeito de avanços como as demarcações de terras, como instrumento de um Estado inepto, é aplicada de forma inepta. A inépcia do Estado brasileiro, esse império indiferente a todos os povos sob seu domínio, a começar pelo culturalmente ocidental, vitima muito mais do que uma só nação.

Não que as nações devam depender dos Estados: as nações devem ter os Estados como um de seus instrumentos de organização, entre outros. Quando, porém, o Estado é imperial, esse Estado não se relaciona com suas várias nações da mesma forma. Ele serve, fundamentalmente, à nação dominante, de que o Estado é afinal a expressão - ainda que falha, como no caso brasileiro. As nações dominadas, não podendo ter no Estado sua verdadeira expressão (neste caso, a própria noção de Estado é ocidental), devem receber do Estado imperial a autodeterminação em seu maior grau possível, acompanhada pela defesa mais eficiente de seus territórios. Que o Estado imperial brasileiro deixe afinal de ser cruel por indiferença, depois de séculos de imperialismo cruel por agressividade.

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