Profeta
domingo, 25 de outubro de 2009
Ilha das Flores- 100 entre 1001 filmes para ser visto antes de Morrer.
No primeiro quadro já tem uma provocação. O curta de ficção já avisa que não é um filme de ficção. A trilha sonora nos remete a algo “verdadeiro”: O Guarani é a música de abertura de um tradicional programa radiofónico que remete à notícia e, portanto, à verdade e realismo. O nome do programa, A voz do Brasil, reforça a idéia de que é o povo quem vai falar (ou de que alguém irá falar pelo povo). O filme resgata esse imaginário sobre a música e aquilo a que ela remete para nos reforçar a afirmativa inicial, de que não se trata de uma ficção.
No quadro seguinte, outro reforço e outra afirmativa: “Existe um lugar chamado Ilha das Flores”. De fato, existe. Mas se não existisse, a Ilha das Flores também poderia ser o referencial imaginado para um referencial real, que seria um certo aterro sanitário onde as pessoas recolhem qualquer coisa do lixo pro próprio sustento.
Ao dizer que “Deus não existe” (terceiro quadro), o diretor expressa uma idéia que dá o tom de todo o curta. Embora muitas vezes parecendo mais uma historinha cômica sobre uma determinada coisa (sobre o tomate, o mercado, o lucro, a comida, o lixo), Ilha das flores é um filme fortemente engajado em uma crítica social irônica que já é delineada nesse terceiro quadro. Ele nos provoca a pensar: se existe um lugar como a Ilha das Flores, existirá Deus? Além de engajado numa causa social importante, Jorge Furtado propõe, desde esse início até a mensagem final, uma profunda discussão filosófica a respeito do ser humano e suas necessidades básicas.
Ao final do curta, que, talvez com exceção da dona Anete e do Suzuki, apresenta apenas questões reais, o tom de comicidade aplicado desde o início perde o rítmo para a gravidade da situação dos que vivem dos restos dos porcos na Ilha das Flores. Ao encerrar essa pequena narrativa sobre a condição humana, Jorge Furtado insere, junto à locução em off, um arranjo de guitarra de O Guarany. Em off, o texto diz assim (trecho do roteiro final):
Confira o video abaixo:
A história começa com um japonês, o sr. Suzuki, que planta tomates para vende-los aos supermercados. Apresenta uma revendedora de perfumes e consumidora que compra no supermercado os tomates plantados pelo oriental. Dona Anete, a revendedora de perfumes, joga fora um dos tomates que considera não servir para a sua família e este tomate é levado a um vazadouro de lixo na cidade Ilha das Flores.
No que deveria ser o aterro sanitário, o lixo é despejado dentro de um terreno cercado onde o proprietário cria porcos. Na Ilha das Flores também tem seres humanos, criativamente caracterizados por Jorge Furtado, produtor do filme, como sendo seres que se diferenciam dos outros animais por possuírem três características: “...pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por serem livres.” E acrescenta: “Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda..”
O terreno cercado e os porcos que vivem lá, por terem dono, são priorizados na busca de restos orgânicos do lixo. O que não serviu para alguns seres humanos e que também não serviu para os porcos que vivem no lixão de Ilha das Flores, servirão para os seres humanos que vivem lá, incluindo velhos, mulheres e crianças. É a partir daqui que começamos uma reflexão mais profunda. O que é ser criança no contexto do filme Ilha das Flores?
Ser criança é estar envolvido num ambiente familiar que permita um desenvolvimento biológico, psicológico e social. Nesta fase é que começamos a descobrir as coisas e a compreender o sentido delas em nossa vida. É ainda criança que se aprende a desenvolver a potencialidade humana ao mesmo tempo em que se descobre o mundo explorando o espaço e as coisas à sua volta familiarizando-se com as particularidades dos objetos como seu gosto, tamanho, profundidade, temperatura, textura, altura, cor e forma.
“Depois da exploração, a expressão da criança deixa de ser de perplexidade. Através do brincar, ela vai desenvolvendo habilidades, compreendendo como funcionam os diversos materiais, vai ampliando sua visão de mundo e construindo seu conhecimento.”(Mimura. 2007).
E quando a criança tem de lutar por sua sobrevivência, como as que lutam pela vida no filme Ilha das Flores? Qual é o ambiente familiar deste pequenino ser? Como compreender o sentido das coisas quando se faz necessário competir por elas? De fato, num contexto de miserabilidade como o demonstrado no documentário, não há o que ser compreendido. Antes, é preciso garantir a vida. Neste contexto, a infância está sendo suprimida da vida dos indivíduos, ainda que de pouca idade, empurrando-os para enfrentar a vida como se adultos fossem.
O conhecer as coisas para os pequenos sobreviventes de Ilha das Flores é diferente da proposta “Aprender a conhecer... aprender a aprender, exercitando os processos e habilidades cognitivas: atenção, memória e o pensamento mais complexo (comparação, análise, argumentação, avaliação crítica) (Davis.2002).
Avaliando a abordagem sócio-interacionista de Vygotsky, Rego afirma que “uma interação dialética que se dá desde o nascimento entre o ser humano e o meio social e cultural que se insere” é possível definir a característica da constituição humana. Isso nos remete à um outro questionamento: quais características se desejam de seres humanos vivendo em condições inapropriadas, de profunda miséria, sendo substituídas na prioridade por porcos?
Em Ilha das Flores, ser criança é não ter infância. É ter roubado o direito de conhecer o lúdico, de aprender a aprender, de interagir com um meio saudável; é ter suprimido a fase da conquista do conhecimento para lutar pela sobrevivência. Para finalizar, vamos resgatar um conceito de Demerval Saviano afirmando que “o processo educativo é passagem da desigualdade à igualdade”. Ou se diminui as profundas desigualdades sociais, ou muitas crianças jamais viverão sua infância.
Prêmios
Melhor filme de curta-metragem (e mais 8 prêmios) no 17° Festival de Gramado, 1989.
Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, 1990.
Prêmio Air France como melhor curta brasileiro do ano, 1990.
Prêmio Margarida de Prata (CNBB), como melhor curta brasileiro do ano, 1990.
Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, 1991.
"Blue Ribbon Award" no American Film and Video Festival, New York, 1991.
Melhor Filme no 7º No-Budget Kurzfilmfestival, Hamburgo, Alemanha, 1991.
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