Profeta

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Será que Deus gosta de brincar com os infiéis?


Uma situação que transpassa a barreira da razão faz com que tal pergunta torne-se, de fato, pertinente para aqueles que acreditam numa entidade sobrenatural comandando, observando e julgando o comportamento da humanidade. Para muitos, inclusive, ela torna-se não só real, como de caráter positivo quando respondida, embora eles não admitam tal possibilidade (ora vamos, a contradição é uma das principais características da religião).

Há séculos muitos homens têm a tendência de creditar a uma suposta divindade todos os casos de destruição natural na humanidade. Um furacão, um tsunami, um terremoto, um meteoro, uma chuva torrencial que faz desabar barrancos, muitos fatores naturais decorrentes de causas absolutamente explicáveis passam ao lado da sobrenaturalidade pela simples razão de parecer ser mais coerente crer na punição divina que na reação do planeta. De certo modo, inclusive, a crença de que as pessoas que morreram estão sendo na verdade castigadas ajuda não só a minimizar a dor pela morte de tantos, como também a fortalecer a própria fé, afinal: “isso jamais aconteceria comigo ou com a minha família, pois somos tementes a Deus”. É o famoso argumento de que “se aconteceu, foi porque ele mereceu, pois Deus escreve certo por linhas tortas”.

Antes que você, cristão sensato e coerente, revolte-se contra minha postura e diga que estou generalizando, ressalto que não, não são todos que seguem essa linha de pensamento. Inclusive, creio eu que esse tipo de metodologia já esteja caindo em desuso. Sem dúvida não podemos comparar a força do argumento da “vontade de Deus” hoje com a que possuía há alguns séculos. De todo modo, por mais que o número de tradicionais arrogantes e insensatos esteja diminuindo, eles ainda possuem uma representatividade forte o suficiente para não só incomodar, como ampliar seus tentáculos em busca de mais mentes sem muito esclarecimento para controlar. O perigo mora exatamente aí.

Todos nós ficamos estarrecidos com o acontecido recentemente no Haiti. Sem dúvida, sentimos o pesar pelas dezenas de milhares de mortos, entre outros incontáveis feridos. Imaginamos a dor de famílias destroçadas, crianças agora órfãs, pais que perderam suas crianças. É o tipo de situação onde a compaixão humana é colocada em prova e posso dizer, com orgulho, que costumamos passar bem nesse tipo de teste.

Contudo, o câncer do fanatismo e da intolerância sempre aparece quando menos precisamos dele. Com tanto sangue jorrado nas terras haitianas, alguns segmentos de religiões conseguiram, mais uma vez, a superação na arte de falar asneiras e tentar manipular o povo para o pensamento de que devemos temer a Deus, pois ele pode fulminar nossa casa se não obedecermos.

O primeiro sinal que presenciei aconteceu na rádio católica que minha amada avó costuma ouvir todas as manhãs. Nela, o locutor veio com a notícia de que um determinado bispo brasileiro havia dito algo mais ou menos assim:

“Os haitianos estão pagando o preço por se misturarem com a magia negra. O voodoo sempre esteve presentes naquelas terras e o que aconteceu é apenas uma prova de que não devemos mexer com esse tipo de coisa”.

Das duas uma, ou o chefe dos portões do inferno gosta de destruir seus supostos seguidores, ou Deus ficou irritado e matou todo mundo. Logicamente, nenhuma das duas alternativas faz sentido para pessoas inteligentes, embora faça para um Bispo e uma penca de fiéis.

Devo acrescentar, porém, que a bobagem proferida pelo Bispo não foi nada comparada ao que o Reverendo Pat Robertson disse, nos Estados Unidos:

“Algo aconteceu muito tempo atrás no Haiti, e as pessoas não gostam de falar sobre isso. Eles estavam sob domínio francês. Você sabe, Napoleão III, ou algo assim. Eles se juntaram e fizeram um pacto com o demônio. Eles disseram: Nós vamos servir você se você nos livrar dos franceses. –história verdadeira- Então o demônio disse: OK, temos um trato. Desde então eles tem sido amaldiçoados por uma coisa atrás da outra”

Crédito: contraditorium.com

Vejam bem, não estamos falando de pessoas insignificantes, de pequenos padres ou tios sem noção do certo ou errado. Estamos falando de cidadãos que influenciam as mentes de milhões de pessoas. Absolutamente ninguém aparece para condená-los, para apontar dedos e dizer-lhes a verdade sobre sua conduta distorcida, pois o homem tem medo do desconhecido e, mais que isso, medo dos que possam representar o desconhecido. Um representante religioso pode dizer a asneira que for e dificilmente será repreendido, enquanto nós, ateus, só precisamos abrir a boca para recebermos pedras em nossos rostos, normalmente arremessadas por religiosos que se orgulham em pregar o amor e a paz (logicamente, apenas para os que têm a mesma crença). Humoristas são perseguidos por fazerem piadas inofensivas de humor negro, enquanto esses cidadãos, que falam coisas muito piores que apenas tiradas irônicas e, principalmente, de maneira séria, não sofrem rigorosamente nada.

A situação só piorou quando apareceu o destaque do crucifixo que ficou de pé enquanto toda a igreja ao redor desmoronou. Imediatamente, cristãos levantaram a voz para mostrar como era lindo e forte o poder de Jesus. O que me deixa estarrecido é o fato de que eles não questionam uma coisa simples: “Por que Deus estaria tão preocupado em deixar seu crucifixo de pé, mas não em permitir que 100 mil pessoas morressem pelo mesmo acidente?” – Ora, se Deus realmente existe, como poderia ser tão cruel a ponto de soltar a maior piada de humor negro da história da humanidade, deixando sua imagem intacta enquanto corpos destroçados jaziam a seus pés? Ao que muitos consideram um milagre, eu apenas consigo sentir uma pitada de vergonha alheia.

Por fim, eu volto a frisar o que tanto já falei por aqui: não importa que o homem tenha sua fé, desde que saiba o limite entre o que deve acreditar para si e o que deve profanar contra os outros. O respeito, que tanto reivindicam, deveria ser seu primeiro ato moral, mesmo que seu suposto próprio Deus não tenha nenhum.

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